Um ato do diário da nova Casa Oxente
Na foto, nossa primeira coleção de arte. Olhando para trás, vejo que a Casa Oxente sempre existiu, só não tinha esse nome.
A Casa Oxente nasceu de um descompasso. Ou melhor, de muitos. Uma filha indo embora para a faculdade. Duas mudanças de país no mesmo ano. Ausências de seres que se foram. Novas demandas do corpo. Uma sensação insistente de que o tempo está mais curto, que a vida pede mais urgência, mais sentido. Foi nesse emaranhado de deslocamentos que surgiu o desejo de criar algo que permanecesse. Algo que, quando olhado de trás pra frente, dissesse: valeu a pena.
Nesse momento, olhamos para aquilo que sempre nos deu prazer: a arte. Mais especificamente, a arte que carregamos conosco. Já moramos em vários países — e falo em países não apenas como lugares, mas como culturas inteiras, com línguas, hábitos e referências muito distintas das nossas. Nessas mudanças, na tentativa constante de nos (re)encontraros com as nossas próprias culturas, foi a arte que nos serviu de lastro. Foram as obras que escolhemos trazer que sempre nos acompanharam. Cada uma delas contava uma história, cada uma era um pedaço de casa.
Duas delas são especialmente marcantes. Uma é uma peça de cerâmica que reinterpreta uma daquelas fotografias antigas de estúdios do interior do Nordeste. Dois homens posam sérios, compenetrados. Quando vi, parecia comigo e com meu marido. Quem a criou não nos conhecia. Não era para nós. Mas era como se fosse.
Essa obra me marcou também por sua ousadia: colocar um casal de homens naquele tipo de enquadramento tradicional já indica uma abertura, uma atualização, uma ruptura com convenções. Há ali um gesto de modernidade — e, de certa forma, um ato político.
A segunda peça é uma jaca. Uma jaca enorme, também de cerâmica. Quando a vi, soube que ela era minha. Minha avó tinha uma jaqueira no quintal. Aliás, tinha muitas árvores. Subi em quase todas, mas não na jaqueira.
Com o tempo, a casa virou quase uma coleção, um lugar onde cada objeto era afeto. E as visitas vinham. Os amigos queriam saber as histórias. Queriam tocar, ouvir. Era um prazer partilhar aquilo. Mas era também um privilégio restrito. Daí surgiu o desejo de abrir. De tornar público. De compartilhar com mais gente.
A arte popular como ponto de partida
A primeira ideia foi de trabalharmos apenas com a arte popular. Mas logo percebemos que o termo, embora potente, carregava armadilhas. “Popular” ainda é muitas vezes usado para diferenciar, hierarquizar, excluir. Preferimos pensar em materialidade. Em gesto. Em território. Em presença. Eu, enquanto artista, trabalho com, tecido, digital, papel. Queria trazer a diversidade para esta casa.
A Casa Oxente não quer separar popular e contemporâneo. Ela vem para afirmar que o a contemporaneidade está em tudo. Por isso, criamos um espaço de conexão com a territorialidade expandida do Nordeste. Não só como geografia, mas como tema, afeto, presença viva. O Nordeste como estado de espírito, não apenas como região. Como algo que está aqui, em Lisboa, e em tantos outros lugares. Uma existência que se espalha, que se reinventa, que não depende de outros centros para existir.
Essa compreensão veio também com as memórias das mulheres da minha família. Minha avó, por exemplo, gostava de casa cheia. Dançava reisado, jogava baralho com as vizinhas, abria a porta para quem chegasse. As tias-avós tinham esse mesmo espírito coletivo. Faziam porque fazia sentido. Porque era assim que se vivia. A Casa Oxente herda isso: o desejo de partilha, de sentido, de comunidade.
Começamos abrindo a nossa própria casa. Vieram os encontros, os Tira-Gosto, os Saraus. Vieram as conversas, os afetos, as presenças. E, com o tempo, veio também a percepção de que era hora de dar um passo maior. Que a Casa Oxente precisava de um espaço que fosse seu. Um espaço onde pudesse existir com plenitude. Um lugar com chave, parede, luz da tarde, árvore na frente e olhos curiosos a passarem por ela. E agora, esse lugar existe.
A Casa Oxente tem casa própria. Mas a verdade é que ela sempre teve. Porque ela nasceu das casas que nos formaram. Das peças que levamos conosco. Das memórias que nunca ficaram para trás. Das ausências que pedem presença.
Essa casa não começa agora. Ela continua.
por Wilame Lima