O Tira-gosto é um espaço de encontro da Casa Oxente — um momento para conversas informais, mas profundas, sobre arte, cultura e pertencimento. Nesta edição, recebemos o filósofo, professor e curador Filipe Campello para uma reflexão sobre contemporaneidade, identidade e Nordeste.
O texto abaixo foi lido na abertura do evento e é, ao mesmo tempo, uma provocação e um convite. Ele fala sobre fronteiras — físicas, simbólicas e discursivas —, sobre as limitações das categorias como “arte popular” e sobre o desejo de transformar o presente em espaço de escuta e reinvenção. É também uma tentativa pessoal de nomear inquietações que atravessam o projeto da Casa Oxente.
Boa noite.
Num momento em que as fronteiras voltam a se fechar — em que países se encapsulam, discursos se radicalizam e o mundo parece cada vez menos poroso —, falar de arte, de cultura e de pertencimento torna-se um gesto político.
Vivemos tempos de aceleração e instabilidade. Crises climáticas e financeiras, deslocamentos humanos forçados, guerras, o avanço da extrema-direita e a precarização das vidas — e da vida em comum.
Diante disso tudo, para que serve a arte contemporânea? Qual é o seu papel neste tempo? O que é ser contemporâneo? Será simplesmente estar no tempo presente? Ou seria reconhecer esse tempo — e se implicar nele? Aceitar a instabilidade como condição? Ou resistir à tentação de repetir o que já conhecemos?
E se ser contemporâneo é isso, o que significa fazer arte contemporânea? É produzir pensamento num mundo em convulsão? Criar a partir da fratura? Questionar a ordem simbólica das coisas? Inventar formas de estar no mundo que ainda não têm nome?
Pode o Nordeste ser contemporâneo?
Esta não é uma pergunta “cronológica” e nem tem a ver com temporalidade. Ela fala de agência, de presença e de transformação.
Falamos dessa tal “identidade nordestina” — entre muitas aspas — tantas vezes representada como um bloco único, estático, folclorizado. Ora exótico, ora miserável. Ora símbolo de resistência, ora de carência. Mas sempre figée, como diriam os franceses: congelada.
A quem serve uma identidade?
Se ela não é capaz de perturbar o sistema que a enquadra, ela vira estampa. Vira marketing. Vira mercadoria. Não basta ser incluída — é preciso que sua presença transforme o espaço onde chega.
A luta não é apenas por reconhecimento. É por deslocamento. Por reconfiguração daquilo que chamamos arte, centro, valor.
Confesso: nem para mim é fácil nomear isso tudo. A Casa Oxente é um espaço de arte? De arte popular? A expressão “arte popular”, que usei por tanto tempo, começa a me incomodar. Sim, ela chega carregada de histórias e de afetos — mas também de contenções.
A distinção entre arte popular e arte contemporânea não é uma barreira cronológica. É de poder. E, por isso, precisa ser atravessada.
Hoje temos o prazer de receber Filipe Campello — filósofo, professor e curador — alguém que nos propõe cruzar fronteiras: geográficas, conceituais, institucionais. Queremos conversar sobre o direito de mudar, de se autorrepresentar, de contradizer o que nos foi dado. Sobre o Nordeste como lugar de produção estética e crítica. Sobre a arte como linguagem viva — e a identidade como provocação.
Porque, se o mundo lá fora insiste em erguer muros, aqui seguimos cruzando fronteiras. E talvez essa seja a nossa forma mais sincera de existir no tempo: como quem abre caminho — e convida outras pessoas a atravessar com a gente.
por Wilame Lima
(Texto de abertura do Tira-gosto com Filipe Campello: O Nordeste na Rota da Arte Contemporânea – 22 de maio de 2025)